Crônica de Quinta - O final, os sacos na calçada e a noite fria - Edna Rodrigues

Dia desses voltando do trabalho debaixo de um chuvisco insistente, enxergo através do vidro embaçado pela noite fria o que restou de um relacionamento de muitos anos.
Ele, empilhando sacos plásticos na calçada, tentando colocar em ordem a vida que talvez tivesse uma bagunça.
Ela, não vi, mas posso imaginar que talvez desocupar o guarda-roupa para encher aqueles sacos depositados na calçada, não fosse uma tarefa fácil.
O fim nunca é fácil, né?!
Imaginei que talvez o ar tivesse tenso e pesado por lá, afinal enxergar o vazio chegar dói, mesmo quando essa decisão é necessária.
O fim nunca é fácil pra ninguém.
Enquanto meu carro passava numa fração de segundos pude formular várias perguntas e imaginar quantos fantasmas habitariam aqueles cômodos agora.
O chuvisco e a névoa deixavam tudo mais melancólico e eu tinha certeza, o fim é mesmo um abismo.
Fiquei me perguntando se o fim era mesmo só isso, sacos na calçada e uma noite fria para coroar a solidão que sorria tão solidária.
Pensei em quantos sorrisos iam ali dentro dos sacos colocados de qualquer jeito na calçada, quantos almoços de domingo iam ali embalados? Quantas noites de sábado iam sacudindo no meio da bagunça? Quantas taças de vinho e quantos "eu te amo" se misturavam às tralhas ali no chuvisco?
Quanta vida estaria presa na bagunça exposta aos pés dos passantes?
Afinal, quantos sacos plásticos é preciso para embalar o fim?
Edna Rodrigues

Plágio é crime
Imagem: Pixabay